O que é identidade e autonomia?

O bebê se percebe como ser único quando reconhece os próprios limites (e os dos outros)

Reconhecer a própria imagem é um dos passos para a construção da identidade
Identidade
De acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, identidade remete à ideia de distinção. Diz o documento: "é uma marca de diferença entre as pessoas, a começar pelo nome, seguido de todas as características físicas, de modos de agir, de pensar e da história pessoal".
Construir a identidade implica conhecer os próprios gostos e preferências e dominar habilidades e limites, sempre levando em conta a cultura, a sociedade, o ambiente e as pessoas com quem se convive. Esse autoconhecimento começa no início da vida e segue até o seu fim, mas é fundamental que alguns conhecimentos sejam adquiridos ainda na creche.
Assim que nasce, o bebê permanece um bom tempo em fusão com a mãe. Isso significa que ele ainda não é capaz de reconhecer os próprios limites e os limites do outro. Por isso, o desenvolvimento da criança nos primeiros anos de vida está intimamente ligado a experiências de frustração - no jargão freudiano (leia mais sobre Sigmund Freud) - pelas quais terá de passar para compreender-se como um ser único em meio a outros seres igualmente singulares, ou seja, um ser com identidade própria.
O cerne da construção da identidade está nas pessoas com as quais a criança estabelece vínculos. A família é o primeiro canal de socialização. Em seguida, e tão importante quanto, está a escola.
Autonomia
A autonomia, segundo o mesmo referencial curricular é "a capacidade de se conduzir e de tomar decisões por si próprio, levando em conta regras, valores, a perspectiva pessoal, bem como a perspectiva do outro". Mais do que autocuidado - saber vestir-se, alimentar-se, escovar os dentes ou calçar os sapatos -, ter autonomia significa ter vontade própria e ser competente para atuar no mundo em que vive. É na creche que a criança conquista suas primeiras aprendizagens - adquire a linguagem, aprende a andar, forma o pensamento simbólico e se torna um ser sociável.
A especificidade do trabalho na creche
Na faixa de 0 a 3 anos, explorar o eixo identidade e autonomia envolve ajudar os pequenos a desenvolver o reconhecimento da própria imagem. O objetivo é que eles se identifiquem como seres únicos, com corpo, hábitos e preferências próprias. Ao mesmo tempo, é desejável que os bebês ganhem independência progressiva para tanto para realizar ações cotidianas, como brincar e se expressar por meio da linguagem, quanto para o cuidado com a higiene e a alimentação. O caminho privilegiado para conseguir esse desenvolvimento são as atividades de interação, que possibilitam a criação de vínculos afetivos e o aprendizado das regras para a vida em sociedade.
Por que trabalhar identidade e autonomia?
Desenvolvimento pleno exige estímulos afetivos, cognitivos e motores
Bebê se alimentando sozinho. Foto: Marcos Rosa
Na rotina da creche, os bebês precisam de oportunidades para realizar ações por conta própria
O desenvolvimento da identidade e da autonomia dos pequenos não ocorre de maneira adequada se não for estimulado. Por isso, todo educador que trabalha na creche desempenha um papel essencial, pois ele ajuda a criança a desenvolver-se, desde que consiga estabelecer vínculos com ela.
Um pouco de teoria
Segundo o médico, psicólogo e filósofo francês Henri Wallon (1879-1962), um dos principais estudiosos do desenvolvimento infantil, antes mesmo da aquisição da linguagem, a emoção se configura como o meio utilizado pelos bebês para estabelecer uma relação com o mundo. Ele foi o primeiro pesquisador a incluir a afetividade como componente para a formação integral da criança, junto do movimento, da inteligência e da formação do eu como pessoa. Aspectos motores, afetivos e cognitivos, portanto, integram-se o tempo todo ao longo do desenvolvimento. E a manutenção de vínculos com os adultos é essencial.
Esse aspecto é explorado com profundidade na obra do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), para quem o homem é dialógico por natureza. Isso significa que ele precisa dos semelhantes para existir, ser e viver. O psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981), vai ainda mais fundo. Para ele, a idéia que temos do "eu" só é possível graças ao outro. Ou seja, o "eu" é construído pela imagem do outro. A identidade e a autonomia, portanto, estão intimamente ligadas às relações com o grupo.
À medida que os pequenos vão sendo atendidos em suas necessidades básicas, eles passam a identificar as pessoas que cuidam deles e aprendem a se localizar no ambiente. Aos poucos, também percebem que são distintos das outras pessoas e passam por um estágio de reconhecimento da própria imagem diante do espelho, marca da passagem que diferencia o "eu" do outro.
A especificidade do trabalho na creche
Até os três anos, praticamente todas as descobertas e brincadeiras estão relacionadas à construção da identidade e da autonomia. Por isso, o educador deve estar sempre atento a qualquer manifestação das crianças (choros, caretas, movimentos). Também é importante sempre chamá-las pelo nome; além de observar e de registrar, com cuidado, as preferências e gostos de cada um.
Para Beatriz Ferraz, coordenadora da Escola de Educadores, em São Paulo, "unir cuidados e conteúdos é oferecer, ao mesmo tempo, afeto e Educação desde os primeiros anos de vida". O eixo de identidade e autonomia trata, justamente, da capacidade de o bebê se perceber como pessoa e tornar-se independente, desde que receba os estímulos adequados. Vale lembrar que os bebês aprendem de forma ativa e, por isso, valorizar a exploração e a manipulação de espaços e de objetos é imprescindível nesse período.
Uma boa evolução psicomotora, cognitiva e linguística está vinculada ao processo de construção da personalidade e à capacidade de se relacionar e de se comunicar com as outras pessoas. E é somente ao ter a oportunidade de interagir que o bebê aprende a se relacionar com o outro. O mundo e ele deixam de ser uma coisa só (a criança não distingue totalmente os limites entre ela e o outro até o primeiro ano de vida) e os conflitos gerados nessas situações de interação são um ótimo meio de aquisição da linguagem verbal, desde que bem mediados por você. Já as atividades que a criança começa a realizar sozinha, como alimentar-se ou observar as ações dos colegas, ajudam-na a incorporar hábitos e valores do lugar onde vive.
O item 3 - O que trabalhar traz a descrição pormenorizada das ações mais indicadas para explorar identidade e autonomia com os bebês.

3. O que trabalhar?

3.1 Imagem corporal

Espelho é elemento chave para a construção progressiva do "eu"
Menina vê a própria imagem diante do espelho. Foto: Emilia Brandão
Exercícios em frente ao espelho ajudam os bebês a reconhecer a própria imagem
Um dos estágios mais importantes no desenvolvimento de qualquer pessoa é o que o psicanalista francês Jacques Lacan (1901-1981) denominou como estádio do espelho ("estádio", no caso, é sinônimo de fase ou período). Até mais ou menos os seis meses de vida, o bebê sente-se como parte de um corpo fragmentado - completado por sua mãe. Na medida em que cresce, adquire maior mobilidade, sofre intervenções do ambiente e deixa de ser amamentado, o bebê começa a perceber-se como um ser distinto. Quando colocado em frente a um espelho, ele progressivamente reconhece a imagem refletida de seu corpo e é a partir dessa experiência que o "eu" começa a ser construído.
Espelhos, portanto, são elementos imprescindíveis para a construção da identidade e devem estar em todas as salas na creche. Eles ajudam as crianças a ter consciência dos limites do próprio corpo e a observar os próprios movimentos, diferenciando-se dos colegas e do ambiente. Mantenha-os baixos, na altura dos pequenos, e ofereça oportunidades para que eles façam caretas, dancem, comparem imagens e realizem desafios corporais em frente ao espelho.
Para os bebês também é possível imprimir cartazes com as fotos dos pequenos e colar no chão - já que eles engatinham - ou nos berços. Todas essas oportunidades de exploração vão ajudá-los a manter o contato com a própria imagem e a identificar a figura do outro.
Experiências que envolvam música e sensações também são bem-vindas, assim como as ações de cuidado com os bebês. Tomar banho, ser trocado ou mamar, por exemplo, são atividades essenciais para o reconhecimento de si e o estabelecimento de vínculos com o outro. À medida que percebe seu corpo separado do corpo do outro, a criança consegue organizar as próprias emoções e ampliar seu repertório e seus conhecimentos sobre o mundo que a cerca.
3.2 Regras e hábitos
Ações de autocuidado e de formação de vínculos são o cerne do trabalho
Bebês brincam com chocalhos. Foto: Kriz Knack
Nas atividades em grupo, os bebês começam a aprender regras de convivência
Para desenvolver a capacidade progressiva de tomar decisões por conta própria, o bebê precisa de momentos de interação nos quais possa observar e ser estimulado a seguir regras estabelecidas dentro do grupo. Segundo o filósofo Immanuel Kant (1724-1804), o conhecimento se constroi, justamente, pela interação do homem com o meio - ideia retrabalhada na psicologia e nas investigações de cientistas como o suíço Jean Piaget (1896-1980).
Na fase de controle dos esfíncteres, por exemplo, é importante que a criança sinta-se incomodada com a presença de urina e fezes. Isso vai ajudá-la a, aos poucos, a abandonar a fralda e passar ao uso do penico e do vaso sanitário, o que acontece por volta dos 2 anos de idade.
A maior independência da criança passa, ainda, pelo domínio de ações de autocuidado - como ajudar o adulto a vesti-la (entre 2 e 3 anos) ou fazer a higiene das mãos, com ajuda. Mas a incorporação desses hábitos é gradativa e precisa ser devidamente estimulada por você na creche. Vale lembrar que o desenvolvimento das crianças não deve ser equiparado. Cada um tem o seu ritmo e deve ser observado como um ser único e competente para ser autônomo.
Os estudos de Piaget mostram que a criança não raciocina como os adultos e que a inserção de regras, valores e símbolos se dá gradualmente, até que se alcance a maturidade psicológica. Para ele, nos primeiros anos de vida, os pequenos conferem legitimidade a regras e valores determinados pelos adultos, já que mantêm vínculos afetivos com eles - especialmente pais e educadores. Apenas quando domina a chamada moral autônoma é que a criança tem maturidade para compartilhar regras e discuti-las com o grupo, levando em conta o próprio ponto de vista e as opiniões dos colegas.
Ao longo da rotina na creche encoraje a criança a realizar pequenas ações individuais e estimule os momentos de socialização com os colegas. Explique cada uma das ações de cuidado e valorize quando a criança conseguir expressar preferências ou desejos - seja por meio de gestos, do choro ou de palavras. Vale, também, demonstrar insatisfação quando a criança tomar uma atitude que destoe das regras estabelecidas para o grupo. A comunicação com diferentes parceiros é mais um ponto importante a ser trabalhado no desenvolvimento dos pequenos.
3.3 Comunicação
Interação com adultos e colegas é fundamental na inserção cultural
Bebês interagem entre si. Foto: Roberto Chacur
Mesmo antes de falar, os bebês encontram formas eficientes para se comunicar
Desde que nascem os bebês se orientam pelo outro e criam vínculos afetivos com as pessoas que lhes garantem a satisfação das necessidades básicas - alimentação, descanso, higiene etc. É o adulto quem possibilita que a criança gradativamente tome conhecimento de si, tenha acesso ao mundo e seja inserida na cultura.
A identidade e a autonomia só serão alcançadas pelos bebês se eles forem submetidos a situações diversas de interação com o meio em que vivem. Isso implica se relacionar com adultos - pais, professores e funcionários da creche -, com colegas e com crianças mais velhas e mais novas. A comunicação envolve a exploração de situações e de ambientes, a observação das ações do outro e a expressão de desejos ou insatisfações por meio da linguagem corporal.
O êxito do processo de acolhimento das crianças na creche depende de uma boa comunicação entre bebê e educador. Desde o berçário, é fundamental observar se a criança responde a estímulos com gestos, sorrisos, choro, movimentos ou brincadeiras. Ao experimentar um novo alimento, por exemplo, ele demonstra alguma preferência? Faz uma careta ou abre a boca para receber mais uma colherada? E nas brincadeiras com os colegas ou nas atividades com música? O bebê reconhece quem é diferente dele? Movimenta-se conforme o ritmo?
Manter uma boa comunicação é um processo anterior à aquisição da linguagem verbal - que se dá depois do primeiro ano de vida. Os momentos de interação social permitem aos pequenos inserir-se na linguagem. Através dos significados que lhes são atribuídos pelos adultos - essa criança é mais 'tranquila' ou mais 'esperta', por exemplo - eles constroem a própria identidade e reforçam o processo de diferenciação entre o "eu" e o "outro".



3.4 Expressão de preferências
Comunicação de gostos e desejos se desenvolve principalmente por imitação e oposição
Criança interage com educadora. Foto: Tatiana Cardeal
Um bom vínculo com o adulto é um estímulo para que a criança expresse suas preferências
No berçário, os pequenos ainda não dominam a fala, mas isso não significa que não possam expressar suas preferências. O desenvolvimento da linguagem começa muito antes que possam pronunciar as primeiras palavras. Quando começam a falar, as crianças já são craques na comunicação.
Desde os 3 meses de vida os bebês são capazes de emitir sons espontaneamente. Entre os 5 e os 6 meses, começam a balbuciar. Somente a partir dos 9 meses, em média, aparecem os primeiros sons foneticamente estáveis, mais semelhantes à fala que os pequenos ouvem. Quando chegam ao primeiro ano de vida, é que as crianças pronunciam as primeiras palavras. Vale lembrar que esse ritmo de desenvolvimento não é igual para todos. Alguns bebês começam a falar com 2 anos apenas - e não há problema algum nisso.
No berçário, é importante levar em conta dois processos que ajudam o bebê a desenvolver sua autonomia e, consequentemente, expressar suas preferências: a imitação e a oposição. Desde muito novinhos (e se devidamente estimulados), os pequenos conseguem imitar gestos, sons e expressões dos adultos. Isso os ajuda a identificar-se com o outro ao mesmo tempo em que se diferenciam. Entre os 2 e os 3 anos, a imitação entre crianças é um facilitador para as brincadeiras e situações de interação. O mesmo vale para a oposição. Quando discorda do outro ou briga por um brinquedo, por exemplo, a criança quer afirmar-se como única, ao mesmo tempo em que exercita a convivência com os demais.
No dia a dia da creche, é importante observar e registrar as reações de cada criança. Você precisa perceber o que chama a atenção do bebê; que tipo de expressões corporais e sons a criança emite em diferentes situações; além de ouvir os pequenos quando eles tentam comunicar-se verbalmente. Fazer perguntas ao bebê, interpretar suas tentativas de comunicação e reafirmá-las verbalmente - usando gestos e expressões faciais - são boas iniciativas para ampliar o repertório das crianças. Vale repetir palavras, imitar gestos e comentar o que está acontecendo ao redor, para que a criança, progressivamente, seja capaz de expressar as próprias preferências.



3.5 Higiene
Cuidado com as necessidades básicas dá o tom na creche
Bebê tomando banho. Foto: Fernanda Preto
A hora do banho é um dos principais momentos de cuidado na rotina da creche
No berçário, ações que envolvem cuidados corporais são fundamentais. Nesse aspecto, há três áreas básicas que devem ser exploradas: a higiene, a alimentação e o repouso. No que diz respeito à higiene, uma informação essencial é que as ações dos adultos servem como modelo para as crianças. Se o adulto lava as mãos antes de pegar nos alimentos, a criança tem mais facilidade em aprender que esta é uma ação de higiene importante.
A partir dos 18 meses, em geral, a criança passa a se interessar por suas necessidades. Aponta quando o xixi escorre, mostra a fralda e, de alguma forma, avisa o educador quando precisa ser trocada (é muito importante, aliás, que as trocas de fralda sejam entendidas pelo bebê como momentos de cuidado). Nesse período, a criança começa a controlar melhor os esfíncteres e retém o xixi e o cocô por mais tempo. Ao perceber que a criança precisa urinar ou evacuar, você pode perguntar a ela se deseja usar o banheiro e, aos poucos, estimulá-la a abandonar a fralda. Outra atitude fundamental é não estabelecer horários para a troca na rotina da creche. Ela deve acontecer sempre que houver necessidade.
Até os 3 anos, a criança também ajuda os adultos a vesti-la. Ela pode erguer os braços para colocar a camiseta, por exemplo, ou avisar quando está suja ou molhada. É importante que essas ações de cuidado sejam compartilhadas entre os educadores na creche e as famílias dos bebês.
Mas atenção: os momentos de cuidado não devem ser confundidos com momentos de "escolarização". A hora do banho, por exemplo, não serve para que se ensine à criança as partes do corpo, mas para que ela participe deste momento com progressiva autonomia e seja capaz de realizar pequenas ações, como levantar os braços ou ajudar na lavagem das mãos.