JOGOS E BRINCADEIRAS : DESAFIOS E DESCOBERTAS



PGM 2 - O BRINQUEDO COMO OBJETO DE CULTURA
CRISTINA LACLETTE PORTO




Brinquedos industrializados e artesanais

A inusitada1 peteca
Lúcio Costa

Alguém me deu de presente, em fevereiro, esta peteca. É rosa, com penas de laivos verdes, amarelos e brancos; é luminosa e leve mas tem carga latente. Ficou desde então pousada sobre a mesa, à espera. À espera apenas de um gesto. (In extremis)

Essa poesia é um dos muitos registros de vivência deixados pelo arquiteto Lúcio Costa. E, neste texto, representa um convite. Vamos imaginar os vários caminhos que a peteca percorreu até chegar às mãos
de uma criança?

Quem a teria feito? Por que escolheu essas cores? As petecas são todas necessariamente leves? Por que alguém escolheu exatamente aquela para dar de presente? A que carga latente o arquiteto se refere? Por que foi colocada sobre a mesa? O gesto esperado é o de uma criança curiosa ou de um adulto ansioso em revelar sua infância, demonstrando destreza no jogo?

Do brinquedo à brincadeira, todo um universo está condensado à espera daqueles que se disponham a descobri-lo. Vários autores de diversas áreas mergulharam na história dos jogos e dos brinquedos. Apenas para citar alguns, destaco Johan Huizinga, Walter Benjamin, Philippe Ariès, Roger Caillois e Gilles Brougère.

Num dos ensaios do filósofo alemão Walter Benjamin (2002), escrito entre 1928 e 1930, sobre a história dos brinquedos, o autor alerta que há um grande equívoco na suposição de

que são simplesmente as próprias crianças, movidas por suas necessidades, que determinam todos os brinquedos. As crianças, quando brincam, se defrontam o tempo todo com os vestígios que as gerações mais velhas deixaram. O brinquedo, mesmo quando não é apenas miniatura de objetos que circulam no mundo dos adultos, é confronto, não tanto da criança

com os adultos, mas destes com a criança. Não são os adultos que, em primeiro lugar, oferecem esses objetos às crianças?

Para Brougère (1992), olhar para o brinquedo é se confrontar com o que se é ou, ao menos, com a imagem do mundo e da cultura que se quer mostrar à criança. O brinquedo é um objeto que traz em si uma realidade cultural, uma visão de mundo e de criança.

Nesse sentido, dependendo do material de que foi fabricado madeira, espuma, ferro, pano ou vinil; da forma e/ou do desenho bonecas bebês ou adultas; do aspecto tátil bichos de pelúcia ou de borracha; da cor panelinhas cor-de-rosa; do cheiro e dos sons que porventura emitam, os brinquedos oferecem possibilidades de experiência variadas.

Em outros tempos, o brinquedo era a peça do processo de produção que ligava pais e filhos. Madeira, ossos, tecidos, sementes, pedras, palha e argila eram os materiais usados para sua construção. Antes do século XIX, a produção de brinquedos não era função de uma única indústria. Dos restos dos materiais usados nas construções, os adultos criavam objetos que,

de um modo ou de outro, iam parar nas mãos das crianças. No entanto, nem sempre foi assim.




Foi o reconhecimento da infância como fase específica da vida, com suas características e necessidades, que possibilitou identificar-se o brinquedo como objeto infantil. Esse novo olhar para a criança e para o brinquedo é resultado de um longo processo histórico,
analisado por Patrícia Corsino no texto referente ao primeiro programa da Série Jogos e Brincadeiras: desafios e descobertas.

A partir do século XIX, quando o brinquedo deixa de ser o resultado de um processo doméstico de produção, que unia adultos e crianças, para ser comercializado, sua forma, tamanho e imagem mudam. As miniaturas cedem lugar aos objetos maiores, indicando que, cada vez mais, a criança passa a brincar sozinha, sem a parceria do adulto.

Beatriz Muniz Freire (1999), no catálogo da exposição intitulada “Dim: as artes de um brincante”, realizada na Sala do Artista Popular do Museu do Folclore do Rio de Janeiro,

analisa as influências que a industrialização exerceu sobre o brinquedo artesanal. Principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, o uso do plástico substituiu materiais como madeira, cera e pano e permitiu o desenvolvimento de uma produção em série.

No âmbito dos brinquedos artesanais, a partir desse momento, iniciou-se o que Paulo Salles de Oliveira (1989) chamou de industrianato, brinquedos inspirados nos artesanais, feitos em série, com temas ditados pela mídia e que, na reprodução, escondem a autoria do artesão; e os chamados brinquedos de autor. Essa denominação é dada àqueles objetos que guardam um caráter local. São brinquedos em que a identidade de um grupo pode ser reconhecida, como as bonecas de pano do Agreste paraibano, ou guardam características de seu idealizador, como os brinquedos feitos por um jovem cearense, conhecido como Dim. Antonio Jader Pereira dos Santos, o Dim, recria, com extrema habilidade, brinquedos tradicionais, dando-lhes novas formas e cores e, por vezes, novo uso. O artesão é porta-voz de vivências coletivas e, ao mesmo tempo, autor de um discurso muito próprio, que ele inscreve em suas criações.

Atualmente, portanto, a quantidade de brinquedos é enorme e sua qualidade varia tanto no brinquedo artesanal quanto no brinquedo industrializado.

A História, no entanto, não é única e linear. Existem povos que viveram processos distintos

de desenvolvimento e que atribuem diferentes noções de família, adulto ou criança. Tal fato nos leva a perceber que os significados e valores dados aos brinquedos e brincadeiras vão variar de acordo com o tempo e com o contexto.

Os grandes centros urbanos, em geral, passaram por transformações que permitem identificar características semelhantes em várias partes do mundo. Até a metade do século XX, as cidades não eram tão grandes nem tão violentas e havia espaços para brincar na rua,

no quintal, nos terrenos vazios e nas praças. Grupos de crianças de idades e origens sociais variadas participavam das brincadeiras. O brinquedo industrializado já circulava na cidade, mas era ainda restrito à classe média. A sociedade de consumo, no entanto, não tinha se consolidado e os adultos (pais, tios avós, vizinhos) ainda contribuíam ativamente para as experiências lúdicas das crianças, confeccionando bonecas de pano, carrinhos de madeira e bolas de meia, ou participando das brincadeiras, propondo cirandas, batendo corda ou riscando o jogo da amarelinha no chão. Gradativamente, no entanto, as crianças foram sendo alijadas do convívio com os adultos e do espaço urbano. O espaço das crianças foi se limitando cada vez mais, até se tornar um conjunto de pequenas áreas, ou locais de consumo. Houve um processo de infantilização da brincadeira e uma progressiva desvalorização já que, num mundo orientado pelo trabalho e pelo lucro, ela é considerada uma atividade não produtiva.

Deve-se levar em conta, também, que a forma de divulgação dos brinquedos modernos se alterou, interferindo na escolha do brinquedo pelo adulto. Agora, são as crianças que escolhem que brinquedos querem ganhar. E, nesse contexto, os brinquedos mais vendidos são aqueles mostrados pela televisão. A televisão é um meio privilegiado de atingir diretamente a criança. A própria veiculação por esse meio exige que o brinquedo tenha




determinadas características. Deve ser comunicável, ou seja, explicável e comunicável através de imagens breves. “Através do brinquedo, como por meio da televisão, a criança vê sua brincadeira se rechear de novos conteúdos, de novas representações que ela vai manipular, transformar ou respeitar, apropriar-se do seu modo. Da mesma forma como para os conteúdos televisivos, os fenômenos do modismo e da mania regem a vida dos brinquedos.” (Brougère, 1995, p.58)

Se grande parte das crianças entra cada vez mais cedo para instituições especialmente voltadas para elas, como as creches e as escolas, cabe a pergunta: que lugar o brinquedo e a brincadeira assumem nesse contexto? Que papel devem assumir os profissionais que atuam na área da educação?

Pedagogos como, Froebel, Montessori e Decroly chamaram a atenção para o valor educativo do jogo e fizeram com que muitos educadores reconhecessem a importância de tal atividade. Ainda hoje, os sistemas pré-escolares discutem se o jogo infantil é um ato de expressão livre, um fim em si mesmo ou um recurso pedagógico. (Kishimoto, 2002)

Brincar na escola é diferente de brincar em casa. Os brinquedos são da instituição; as possibilidades de brincadeiras em grupo são maiores e crianças da mesma idade costumam ficar sob a responsabilidade de poucos adultos. Todos esses fatores influenciam os modos de brincar e exigem reflexão.

Na área da educação, muitas vezes, a preocupação com o lúdico se manifesta apenas pela quantidade de brinquedos disponíveis no acervo, sem se levar em conta os significados que esses objetos carregam.

O acervo de brinquedos num espaço institucional, como creche e escola, deve fazer parte de uma proposta pedagógica que envolva adultos e crianças, pois o acervo de brinquedos é significativo quanto aos objetivos que aquela creche ou escola pretende atingir. Não se trata de tornar pedagógica toda e qualquer brincadeira, mas sim de compreender sua especificidade e importância.

A história do brinquedo permite que se compreenda que, ao longo dos séculos, a criança e o brinquedo assumiram diferentes significados. A convivência de crianças e professores com um conjunto de brinquedos diversos pode permitir que inúmeras experiências lúdicas se realizem e que as histórias neles contidas sejam lembradas, descobertas, transmitidas e questionadas.

Convido o leitor a pensar nos significados que emergem do seguinte conjunto de brinquedos:

bonecas de vários tipos: bebês e adultas, brancas e negras, de pano ou de vinil, sexuadas ou não, antigas ou novas?

transportes variados (barcos, carros, caminhões, aviões, trens) grandes e pequenos, de madeira ou de ferro?

bichos da fauna brasileira?

panelinhas de várias cores e tamanhos e materiais (barro, lata, vinil)?

legumes e frutas de brinquedo ou de verdade? embalagens vazias de vários produtos?
jogos da memória, de tabuleiro, cooperativos, quebra-cabeças, de origens culturais

diversas e com temas que não se restrinjam àqueles impostos pela mídia?

jogos de construção em madeira, blocos para encaixe de plástico com peças grandes ou pequenas?

brinquedos tradicionais como “cinco marias”, pião, corda, bola de gude, “mané-gostoso”, “diabolô”?




roupas, sapatos, bolsas e acessórios para se fantasiar? material para desenhar, colar, modelar, etc.?
pequenas coleções conchas, sementes, pedrinhas? sucatas diversas?

Muitos são os brinquedos industrializados ou artesanais que se fundam em imagens estereotipadas. A cor rosa, por exemplo, foi associada culturalmente, entre nós, ao gênero feminino. Panelas nessa cor sugerem que esse tipo de brinquedo e, indiretamente, o ato de cozinhar se destinam às meninas. Neste caso, sejam de barro ou de plástico, a cor é o aspecto preponderante e reforça valores que devem ser questionados. Meninos não podem brincar de casinha?

Existem bonecas louras, negras, adultas e crianças – o que a presença marcante de apenas algumas delas nas lojas, nas residências e nos acervos escolares significa?

As crianças brincam com o que têm nas mãos e com o que têm na cabeça. (Brougère, 1995)

“Os brinquedos orientam a brincadeira, trazem-lhe matéria. Algumas pessoas são tentadas a dizer que eles a condicionam, mas então, toda a brincadeira está condicionada pelo meio ambiente. Só se pode brincar com o que se tem, e a criatividade, tal como a evocamos, permite, justamente, ultrapassar esse ambiente, sempre particular e limitado. O educador pode, portanto, construir um ambiente que estimule a brincadeira em função dos resultados desejados. Não se tem certeza de que a criança vá agir, com esse material, como desejaríamos, mas aumentamos, assim, as chances de que ela o faça; num universo sem certezas, só podemos trabalhar com probabilidades.” (pág. 105)


Uma proposta lúdica no contexto escolar deve considerar os significados inscritos nos brinquedos e como estes objetos podem chegar às mãos das crianças, de modo a proporcionar as mais diversas experiências. O brinquedo recheia de conteúdos as brincadeiras das crianças e as relações delas com os adultos. A brincadeira permite decidir, pensar, sentir emoções distintas, competir, cooperar, construir, experimentar, descobrir,

aceitar limites, surpreender-se...

Mas será que os profissionais que atuam com as crianças tiveram uma formação que valorizasse sua própria criação, imaginação e ludicidade?

O certo é que a história de cada brinquedo se entrelaça à história de cada professor e de cada criança que dele se apropria. O interessante é que haja mais trocas entre adultos e crianças.

Referências Bibliográficas:

Benjamin, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas cidades; Ed. 34, 2002.

Brougère, G. (org.). Le jouet. Paris: Autrement, 1992. _. Brinquedo e cultura. São Paulo: Cortez, 1995.
_. A criança e a cultura lúdica. In Kishimoto, T. (org.) O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002.

Freire, B. M. Dim: as artes de um brincante. Rio de Janeiro: Funarte, CNFCP, 1999. Oliveira, P.S. O que é brinquedo. 2ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1989

Kishimoto, T. Froebel e a concepção de jogo infantil. In: Kishimoto, T. (org.) O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 2002.

NOTAS:
*       Coordenadora da Brinquedoteca HAPI e professora do Curso de Especialização em

Educação Infantil da PUC-RIO.

1       Inusitado: não usado; desconhecido; esquisito; novo.





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